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Por Michelle Hallack e Miguel Vazquez* - Ainda no inicio deste ano, estávamos envolvidos em pesquisas europeias sobre a integração das indústrias de eletricidade e gás natural, nas quais um dos problemas mais discutidos é a necessidade de construir estocagem elétrica. Nos últimos dez anos, com a introdução de energia eólica, as térmicas a gás se tornaram o mecanismo preferencial de “backup” do sistema (o uso das térmicas passou a responder de maneira complementar a geração eólica).
No entanto, a introdução massiva de produção eólica, e as grandes necessidades de resposta muito rápida associadas a esta, gerou a necessidade de dispor, em alguma medida, de estocagem elétrica para complementar o sistema de forma mais segura e econômica. No momento, a maneira mais econômica de estocar algo de eletricidade (energia, não potência) é a através da energia hidráulica. Por exemplo, é cada vez mais frequente na Europa a proposta de usar usinas fio d’água combinadas com usinas de bombeio puro.
Na maior parte destas discussões europeias, o mundo ideal seria um sistema com reservatórios de grande porte. A postagem de Losekann na semana passada (“Desafio do setor elétrico brasileiro: novo papel dos reservatórios”), chamou a atenção sobre os complexos problemas do “mundo ideal” europeu (que pode ser observado no Brasil), nos permitindo observar que a definição do papel dos reservatórios no mercado elétrico nacional se tornou um tema central, e provavelmente retornará toda vez que a decisão sobre a quantidade das reservas hidráulicas for colocada em questão.
Um dos motivos para se pensar no papel da estocagem no sistema elétrico é a interação que esta terá com a energia eólica. A energia eólica vai jogar um papel relevante no futuro do sistema elétrico brasileiro. Os projetos de novos parques eólicos apresentados para o próximo leilão somam uma capacidade de 8.999 (MW) e segundo as projeções da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) no Plano Decenal de Expansão de Energia, a capacidade instalada deve crescer de 1.403 MW (2011) para 15.563 MW (2021), o que faria da energia eólica a segunda fonte de energia elétrica no país (com 8,5% da capacidade instalada de geração nacional). Nesse contexto, o sistema brasileiro enfrenta um conjunto de decisões particulares de um sistema com reservatórios, que em grande medida não são tão relevantes em outros sistemas mais térmicos.
O problema da definição da geração de backup pode se relacionar também com o velho problema “potência firme ou energia firme”. Num sistema térmico, supondo um fluxo de combustível mais ou menos fiável, a limitação é a capacidade (“potência”) das usinas. Num sistema hidrelétrico com estocagem, a limitação é o reservatório (“energia”). Tradicionalmente, os sistemas elétricos mais térmicos, quando a limitação é de potência, precisam de uma coordenação de curto prazo muito precisa (porque não há estocagem). Nos sistemas elétricos mais hidráulicos, as necessidades principais são de coordenação intertemporal, i.e. quando gastar a água. Dessas características técnicas são derivados sistemas de coordenação muito diferentes. Na Europa e Estados Unidos (sistemas tipicamente térmicos), é preciso escolher entre um número grande de usinas com diferentes custos aproximadamente no mesmo período. No Brasil, a escolha se dá entre usinas com aproximadamente o mesmo custo, mas em diferentes períodos.
Nesta postagem, discutiremos se a energia eólica implica mudanças conceptuais na análise tradicional, ou somente mudam os parâmetros do problema. Obersevamos que, se as características de “sistema térmico” se mantiverem, a reação da Europa ante a introdução de energia eólica responde à lógica tradicional. O vento introduz variabilidade, e portanto, os prazos que se consideram “aproximadamente o mesmo período” tornam-se mais curtos. O Brasil possui estocagem. Sua participação é menor do que observada há alguns anos, mas comparativamente muito maior que a estocagem na Europa. Nessa perspectiva, o problema no Brasil se refere às reservas de longo prazo e como será impactada pelo aumento das incertezas relativas a produção eólica. Certamente, não são as mesmas questões, mas até onde são diferentes ainda esta em aberto. O “backup” necessário no Brasil se refere às incertezas de médio prazo característico da geração hidráulica. Isso pode significar maior presença de tecnologias a gás, o que faz com que os períodos com “aproximadamente o mesmo custo” sejam menores. Nesse caso, é preciso contar com mecanismos de coordenação adequados que considerem a alocação intertemporal de custos.
O problema nos sistemas “térmicos”: Europa - A importância da energia eólica nos países Europeus vem transformando o parque gerador. Nos últimos 10 anos a geração eólica nos países da União Europeia cresceu de 1.913 milhares de toneladas equivalentes de petróleo (TEP) para 15.930 milhares de TEP, como observado na figura abaixo, sendo a Alemanha, a Espanha e a Inglaterra os países com maior produção eólica (em 2011).
Fonte: Eurostat
A principal característica da geração eólica do ponto de vista operacional do sistema é a incapacidade de gerenciar a produção: as máquinas produzem quando há vento e os agentes são incapazes de influir nesta dinâmica (quando, quanto, onde). Como consequência a relação quantidade produzida/capacidade no ano tende a ser baixa (na Alemanha entre 2002 e 2009 esta relação variou anualmente entre 17% e 21%[1],[2]). Ademais com as técnicas atuais tão pouco é fácil prever a produção de forma razoavelmente precisa para horizontes maiores que umas poucas horas. Em um horizonte de 48 horas os erros de previsão variam na media entre 10% e 20% da capacidade instalada. Os erros diminuem com a aproximação do tempo real, com uma hora de antecedência, os erros de previsão caem para 4% a 5%[3].
Deste modo, os mercados elétricos europeus, que tipicamente fechavam a grande maioria das suas operações no chamado mercado diário (às 24 horas de um determinado dia são definidas na manhã do dia anterior), começaram a se encontrar com uma grande quantidade de plantas de geração que não são mais capazes de realizar uma oferta precisa em este horizonte temporal. Devido à grande margem de erro das previsões meteorológicas chaves para a oferta das plantas eólicas, os agentes acabam se limitando a realizar uma oferta aproximada e corrigir os erros nos horizontes de mais curto prazo.
Os mercados mais próximos do tempo real, que eram tipicamente dedicados a ajustes da demanda ou situações excepcionais (problemas técnicos, por exemplo), se converteram em mercados onde se realizam uma parte relevante da cassação da energia total do sistema. Com a introdução massiva de eólicas no mercado elétrico há um deslocamento importante do mercado elétrico para prazos cada vez mais curtos.
O problema gerado por este deslocamento do mercado está nas implicações técnicas. Grande parte do dos geradores de eletricidade podem organizar a sua produção para responder as necessidades detectadas no mercado diário. Isto é, os grupos possuem suficiente flexibilidade para negociar sua energia no mercado diário e ajustar sua produção aos resultados destes, de modo que o produto coincide (em grande parte) com os contratos. Contudo, nem todos geradores possuem flexibilidade para seguir as decisões de mais curto prazo.
Por exemplo, a geração a carvão é uma tecnologia que não consegue entrar em operação (de forma economicamente eficiente) com decisões geradas com poucas horas de antecedência. Neste sentido o encurtamento dos horizontes de negociações diminuem as possibilidades de escolha da tecnologia que será despachada e frequentemente possuem implicações sobre os custos do sistema.
As características da geração eólica permitem variações de produção que podem chegar a 100% da sua geração programada. Ademais estas variações ocorrem em intervalos muito curtos de tempo – uma hora ou poucas horas. Por exemplo, o sistema espanhol experimentou em 2009 flutuações eólicas da ordem de 7000 MW. Por comparar, os desvios da demanda em relação ao programado raramente passam os 100 MW. Estas variações tendem a crescer com aumento do uso de eólicas no sistema.
Diferença da produção eólica (em MW) real e programada: Espanha
Fonte: Red Eléctrica de España
Quando a geração eólica aumenta rapidamente, outros geradores têm de ser capazes de baixar a produção para compensar. Quando a geração eólica cai deve haver outras tecnologias capazes de aumentar a sua produção para substituir a queda da eólica. Caso esta substituição não ocorra, o sistema se torna instável e pode gerar mesmo a queda do sistema. Como somente parte dos geradores de eletricidade é capaz de responder em prazos tão curtos, este nível de flexibilidade requer uma energia mais rápida que só uma parte das tecnologias é capaz de prover. Estas tecnologias possuem custos mais elevados, o que implica custos adicionais se comparado com cenário com desvios conhecidos no mercado diário.
Em resumo, o problema da energia eólica na Europa não é somente a grande variabilidade da produção e a pouca antecedência com que as variações são conhecidas. O outro fator central é a falta de potência instalada com capacidade de resposta. A falta de estocagem elétrica (principalmente hidrelétricas) faz com que se precise geração termelétrica. Nesse caso, se precisa de geração rápida. É um “problema de potência”.
O problema “hidráulico”: Qual é o backup que o Brasil precisa? - A peça chave da lógica anterior (análise dos sistemas térmicos com penetração de energia eólica) é que o sistema tem um “problema de potência”: a limitação de combustível para gerar eletricidade é relativamente pouco importante, dado que o problema central é a limitação de capacidade (neste caso, a capacidade de resposta rápida). Porém, tradicionalmente o Brasil enfrentava um “problema de energia”. Os reservatórios de grande porte faziam que a limitação de capacidade fosse relativamente pouco importante. O problema central era a limitação de disponibilidade de combustível, particularmente de água.
Nesse contexto, a decisão central na operação de um sistema baseado em energia hidrelétrica é a escolha entre gastar a água hoje ou estocá-la para produzir amanhã. Na maioria dos sistemas com mais penetração de tecnologias térmicas, essa escolha está na mão das empresas proprietárias das usinas. No Brasil, a escolha está na mão do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O problema pode ser esquematizado como na figura embaixo:
Figura 1:Esquema das escolhas do uso da estocagem das hidroelétricas
Nesse contexto, o valor da água era definido principalmente pela relação de estimativas em cada período entre o risco de verter a água e o risco de racionamento. As usinas termelétricas foram introduzidas como medida de segurança adicional para evitar o racionamento. A escolha então ficava como em a figura embaixo:
Figura 2:Esquema das escolhas do uso de tecnologias.
Fonte: Elaboração dos autores.
A nova situação no Brasil, onde uma grande parte da produção de eletricidade usa tecnologias com grande volatilidade, faz com que o sistema elétrico possa apresentar maiores “pontas de carga”. A aparição de pontas de carga, parecido com o observado nos sistemas europeus, parece crescer. Neste sentido o problema parece não apresentar mudanças estruturais, mas sim na sua dimensão.
Se os recursos hidrelétricos são destinados a cobrir as pontas (as variações de curto prazo), o nível dos reservatórios decresce. Então, o sistema fica numa posição de risco de que no futuro as chuvas sejam escassas. Para evitá-lo, a solução é a introdução de geração alternativa disponível (como as térmicas) quando as chuvas são escassas. Sendo assim, o raciocínio é formalmente o mesmo que o anterior à introdução de energia eólica. A única mudança é que os níveis de backup devem agora considerar também as variações da geração eólica, e como consequência temos o aumento da dimensão do problema. De outra maneira, pode-se considerar que o problema europeu é geração de “backup” para energia eólica. No Brasil, o problema é a geração de “backup” para a energia hidráulica. Os problemas são diferentes, contudo em ambos os casos as térmicas a gás tiveram um papel importante. No apartado embaixo analisamos alguns dos elementos centrais do problema.
Uso de usina de gás natural: como obter a informação? – O problema de como definir o “backup” da energia eólica é complexo. Mas permitam-nos fazer a suposição de que as usinas a gás natural jogarão um papel relevante no backup dos reservatórios. Mesmo assim, não é simples desenhar o mecanismo pelo qual o ONS pode fazer a otimização (escolha) de quando consumir os recursos de gás e água. Num sistema de grande presença de usinas hidrelétricas, as usinas a gás natural não podem ser consideradas mais só como centrais “limitadas por potência”. Os preços do combustível vão influir na definição do “valor da água”. Na figura 2, a decisão entre produzir com água hoje ou amanhã depende muito do preço do gás natural.
Na escolha representada na figura 2, a produção com as usinas hidrelétricas está substituindo á produção das usinas a gás em um dos dois períodos. Usando um argumento de arbitragem, o valor da água em um determinado período vai ser o seu custo de oportunidade: o custo que o sistema teria se não produzisse com água, mas com termelétricas a gás. Isto é, o preço do gás natural usado para produzir eletricidade nesse período. O problema para o ONS é que o cálculo desse preço do gás é extremamente difícil. Teria que ser feita a comparação entre o preço de gás natural spot e de longo prazo, incluindo produção nacional, possíveis contratos take-or-pay, diferentes cláusulas dos contratos, diferentes possibilidades de arbitragem, preços de transporte de gás nacional, de estocagem de gás, etc.
Os mecanismos de coordenação entre os sistemas de gás e elétrico tornam-se mais relevantes na nova situação. Quando os volumeis de gás eram relativamente reduzidos, as necessidades de otimização intertemporal do gás eram menores também. Mas quando o gás tem uma presença relevante no sistema elétrico, a coordenação é central. E uma das necessidades da nova situação é que o ONS tenha as informações completas dos preços do gás natural nos diferentes períodos. Neste sentido, mesmo que os períodos de decisões sejam distintos, o problema da interação gás e eletricidade e a necessidade de coordenação entre as indústrias não se torna tão distante dos problemas observados na Europa.
Nesse contexto parece importante desenhar um mecanismo que permita aos agentes do sistema de gás natural enviar, com um horizonte longo suficiente (de forma que seja possível a coordenação da logística envolvida, e.g. um ano, ou menos inclusive), uma curva definindo o preço do gás para geração elétrica. Estes preços devem ser capazes de realmente refletir as condições da indústria de gás natural. Desta forma, o ONS seria capaz de incluir os preços futuros do gás (incluindo o risco e a logística estimada pelos agentes do sistema de gás) na decisão entre consumo de água ou de gás natural. Um mecanismo frequente usado para facilitar o intercambio de informações entre diversos agentes é o leilão. O uso de leilões para revelar preços de gás e eletricidade no médio prazo não é uma novidade (Europa e EUA possuem vários exemplos interessantes). O uso deste mecanismo no Brasil deveria ser melhor analisado, podendo potencialmente contribuir para a coordenação entre a industria de gás e eletricidade
[1] IEA, 2012. The Impact of Wind Power on European Natural Gas Markets. International Energy Agency. Working Paper. Paris.
[2] Note que esta relação depende da situação geográfica e não pode ser considerada padrão.
[3] Ibid.
* Michelle Hallack e Miguel Vazquez* são pesquisadores do Grupo de Economia da Energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GEE/UFRJ). O artigo foi publicado no Infopetro (http://infopetro.wordpress.com) , blog do GEE
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publicado em 19 de agosto de 2013
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Não há um erro na figura? Se estoca e chove, produz e verte, se estoca e não chove, também produz!
Edmundo Montalvão· 2 dias atrás
Parabenizo os autores pela excelência e profundidade do texto. Para os leitores que desconhecem o setor elétrico, a leitura do artigo serve para mostrar como é complexa a tarefa dos planejadores do sistema elétrico ao definirem a expansão da matriz de eletricidade do País. E como se já não bastasse essa complexidade técnica, os planejadores ainda têm que lidar com outra dificuldade, essa quase intransponível, que é a oposição cega a hidroelétricas, uma riqueza de inestimável valor para o Brasil. A mídia dá voz a uma enorme quantidade de advogados, arquitetos, que nada entendem do assunto, mas que posam de especialistas em energia, falando um monte de asneiras do tipo "construir eólicas no lugar de hidroelétricas", "recapacitar usinas existentes em lugar de construir novas hidroelétricas". Essas pessoas prestam um desserviço à sociedade em nome de um pseudo-ambientalismo, e devido ao trânsito fácil que têm na mídia, impõem terríveis obstáculos aos planejadores do setor elétrico. Por isso, quando vejo um artigo lúcido e tecnicamente consistente como o que acabo de ler, não posso deixar de elogiar os autores.
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