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G1 globo.com
Funai realiza maior expedição para contato com índios isolados dos últimos 20 anos
Por Matheus Leitão
Registro de parte dos índios da tribo Korubo, que já foi contatada pela Funai — Foto: Ricardo Stuckert, Funai
Enquanto o país estava concentrado no carnaval, a Fundação Nacional do Índio (Funai) preparou a maior expedição dos últimos 20 anos – seja em mobilização de pessoal, seja de orçamento – para fazer contato com um grupo de índios isolados da região da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas.
O objetivo principal da missão é evitar conflitos entre os Korubo do Coari e os Matis, outra etnia indígena da região. Os Korubo do Coari – grupo no qual parte dos índios permanece em total isolamento – reivindicam o direito à terra próxima ao Rio Coari e têm entrado em confronto com os Matis, já contatados, pelo que entendem como invasões de território, além de outras divergências.
O histórico de interação entre as etnias remete aos idos da década de 1920 (saiba mais abaixo), mas o auge do recente tensionamento aconteceu em julho de 2018, quando técnicos da Funai perceberam a possibilidade de um novo encontro, com aproximação de menos de um quilômetro, entre os Korubo e os Matis da aldeia Todowak.
Em 2015, também houve outro capítulo importante da tensão entre as duas etnias, principal suspeita dos antropólogos e indigenistas da Funai para o fato de as duas tribos estarem se aproximando fisicamente nos últimos tempos. Naquele ano, um desentendimento interno entre os Korubo dividiu a aldeia indígena. Uma parte ameaçada fugiu de um afluente do Rio Coari – tradicional local de moradia dos Korubo – para as margens do Rio Branco, mais próximo aos Matis.
Na saída, o pequeno grupo de índios Korubo que se desentendeu levou uma integrante com parentesco mais próximo da população da mesma tribo que permaneceu no afluente do Rio Coari. Nesta dispersão, contudo, o grupo menor de Korubos encontrou os Matis, o que levou a uma outra intervenção da Funai.
Esses dois grupos Korubo nunca mais se encontraram, mas os integrantes da tribo que tiveram esse recente contato da Funai, após o evento de cisão, querem rever seus parentes que permaneceram isolados no Coari. Na avaliação dos funcionários de carreira da fundação, diante dos vários fatos que ocorreram neste caso, não realizar a expedição seria uma omissão. Há risco de extinção física da etnia, segundo eles, no caso de um contato inadvertido.
Segundo informado ao blog, a Funai evitou ao máximo o contato com esses índios isolados sempre com o intuito de seguir a política atual da fundação, consolidada a partir de 1987. Nesta época, se iniciou a ideia atual de "zero encontro", para garantir autonomia dos índios isolados. A política é de nunca tomar a iniciativa de aproximação para preservar a decisão deles de se isolar, mas o órgão abrirá uma exceção com o argumento de tentar evitar esse confronto entre os dois grupos indígenas na terra do Vale do Javari.
Colaboradores da Funai equipam barco para a ação desta quinta-feira (7) na Terra Indígena do Vale do Javari — Foto: Cleuber Amaro/Funai
O gasto inicial da expedição aos chamados Korubo do Coari – que têm entre 30 e 40 índios isolados em estimativa feita em 2015 pela Funai – será de R$ 250 mil. Contudo, o gasto total em um ano pode chegar a R$ 816 mil, caso tudo saia como o planejado e o contato seja realizado com sucesso.
A Funai enviou uma equipe de cerca de 25 integrantes e terá o apoio da Polícia Federal (PF), da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas e do Exército. O Ministério Público Federal e outras organizações indígenas da região foram informados da missão. Uma embarcação grande com quatro botes, além de helicópteros, deve gastar 2 mil litros de gasolina. Seis índios Korubo já contatados, com parentes entre os isolados, participam da ação.
A equipe responsável pela expedição pretende utilizar um plano de contingência para entrar em contato com os índios e evitar danos à saúde do grupo. Interações com povos indígenas no passado levaram a tragédias, com a morte de até 70% da população de índios por doenças como gripe ou sarampo, porque as tribos não têm imunidade.
Em dezembro de 2018, uma portaria conjunta publicada pela Funai e pelo Ministério da Saúde regulamentou as ações de atenção à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato.
"O melhor cenário para nós seria que os Korubos isolados e os seus parentes que já têm contato com a Funai conseguissem interagir bem, permanecendo na região do Rio Coari sem adoecer. O pior cenário é haver um contato e os Korubo se dispersarem na mata. Não teríamos, neste caso, como avaliar eles por doenças", afirma Bruno Pereira, coordenador-geral de índios isolados e recém contatados da Funai.
Bruno Pereira acredita que, se houver diálogo entre os dois grupos de Korubo, isso permitirá saber quem são os Matis, ajudando a pacificar as duas etnias. Se isso acontecer, a Funai avalia que terá conseguido atingir o objetivo principal de proteção física das duas tribos.
"A gente pensa filosoficamente essa política e como ela funciona eticamente, mas, acima de tudo, é uma política pública. Hoje, a gente tem a responsabilidade do Estado de garantir a proteção física e cultural tanto do grupo Korubo quanto dos Matis. O risco é delegar à sorte, que tem resultado em conflitos e mortes", explica o chefe da expedição aos Korubo do Coari.
Foto aérea de aldeia da tribo Korubo feita em sobrevoo de funcionários da Funai — Foto: Funai
Um sobrevoo no início do mês passado identificou três malocas e cinco roçados a 21 quilômetros dos Matis de Bukuwak.
"Essa proximidade dos Korubos, que estão quase dentro das aldeias Matis, é um cenário catastrófico. Em julho do ano passado, houve uma tentativa de contato clara, [os Matis] conseguiram pegar as redes [dos Korubos]. Tentaram cercar e não conseguiram. Mas se escalar para outro confronto, os Matis vão responder da forma tradicional deles, que é violenta”, diz o servidor da Funai.
A análise de pré-contato da Funai apontou como de alto risco a possibilidade de contato, conflito e transmissão de doenças entre as duas tribos. Outra preocupação da Funai, em menor escala, é o aumento de quadrilhas profissionais de caçadores ilegais, fortemente armados, que capturam animais como o pirarucu e têm intensificado a invasão da área.
Existem diversos grupos de índios isolados no Brasil, alguns com zero contato, outros já avistados na beira de rios. Segundo apurou o blog, são 114 registros de índios isolados no país, 28 confirmados, sendo 11 deles na TI Vale do Jaguari.
TI Vale do Javari
A TI Vale do Javari está localizada no extremo oeste do estado do Amazonas e tem fronteira com o Peru. Possui área de 8,5 milhões de hectares, a segunda maior terra indígena demarcada do Brasil, atrás apenas da região dos Yanomami, que possui 9,6 milhões de hectares de extensão.
A região concentra o maior número de povos indígenas isolados do mundo, como os Korubo – etnia em que se concentra a missão da Funai – e os Flecheiros.
Além desses povos, a terra do Vale do Javari abriga grupos de recente contato com a Funai: os Marubo, Kulina, Kanamari, Mayrouna, Tsohom Dyapá e os próprios Matis, que externaram o desejo de pacificar o conflito com os Korubo.
Os Korubo do Coari se alimentam de macacos, antas, bicho-preguiça e peixe-elétrico, se dividindo em três subgrupos na região, sendo que cerca de 88 deles já mantêm contato e convívio com equipes da Funai.
No entanto, os cerca de 40 índios isolados que estão na região do Rio Coari ainda não tiveram o primeiro encontro com as equipes da fundação.
Em uma missão realizada em julho e agosto de 2018, equipes da Funai estiveram na região e confirmaram a presença de grupos de índios isolados da etnia durante a expedição "Monitoramento da Presença de Índios Isolados no Rio Juruazinho".
Histórico de conflitos no Vale do Javari
A região do Vale do Javari é marcada por conflitos entre os próprios povos indígenas. Os índios Korubo já estiveram envolvidos em vários confrontos no passado e, por isso, a Funai tem tratado a situação com cautela. Na região, eles são conhecidos como "caceteiros", pois quando atacam fazem isso com armas feitas de madeiras, chamadas de bordunas.
Segundo relatos históricos obtidos pela Funai, a primeira interação entre os Korubo do Coari e os Matis aconteceu por volta de 1920. Durante um conflito, duas meninas Korubo foram raptadas pelo grupo Matis, permaneceram com eles e constituíram famílias, criando, então, uma ascendência Matis. Após o rapto das crianças, os dois grupos alternam relações de parentesco e de conflitos.
Enquanto os Korubo usam a borduna e zarabatanas como armas, utilizando até de venenos para caçar animais e se defender de inimigos, os Matis usam o arco e flecha.
O ponto de contato dos índios com o Estado brasileiro na TI Vale do Javari começou na década de 1970 quando, ainda sob a ditadura militar, o governo começou a abrir as grandes estradas na região, como a Transamazônica. Neste momento, a Funai chega à região para fazer contato com os índios isolados e permitir a construção das estradas.
O projeto inicial da perimetral do Amazonas previa que a estrada passasse numa região central do Vale do Javari e, para realizar a construção, equipes da Funai instalaram Postos Indígenas de Atração (PIA) na região, tentando contato com os Matis.
A ação não teve o sucesso esperado e os índios entraram em confronto com as equipes para evitar a construção das estradas. Antes mesmo da chegada da Funai ao local, os índios já lutavam contra madeireiros e os conflitos eram frequentes.
Nos anos de 1971 e 1972, a Funai chega à região para a construção da BR-307 e instala postos de atração para facilitar o contato com os grupos. As tentativas de contato são frustradas e os Korubo atacam bases da Funai, matando servidores da fundação.
Um dos casos mais emblemáticos de confronto aconteceu em 1975, quando o sertanista Jaime Pimentel foi morto por índios Korubo durante uma expedição pacificadora da Funai.
No mesmo período, a Petrobras chegou à região para tentar explorar o Rio Jaquirana. Ao perceber o potencial de gás e petróleo na região central do Vale do Javari, a estatal celebra um convênio com a Funai para tentar atuar no local. Os índios reagem à aproximação da Petrobras e uma sucessão de ataques acontece nos anos de 1982, 1983 e 1984.
Em outro caso emblemático, em 1984, o sertanista Lindolfo Nobre é assassinado com golpes de borduna – a arma indígena feita de madeira pelos índios Korubo – enquanto tentava aproximação com o grupo.
Em 1985, após os confrontos, a Funai assina portaria e interdita a região de Vale do Javari, dando início a processo de demarcação da terra.
Já em 1990, alguns índios do grupo Korubo começam a se aproximar de comunidade não indígenas no Itaquaí. A nova dinâmica mostra que um grupo pequeno havia se separado do grupo maior e, em 1995, um morador da comunidade Monte Alegre é morto pelos Korubo com golpes de borduna.
A retaliação acontece em seguida, quando moradores de comunidades ribeirinhas do Itaquaí emboscam o grupo Korubo e matam dois indivíduos com cartuchos fornecidos pelo prefeito de Atalaia do Norte.
Em 1996, é criada a Frente de Contato Vale do Javari para dar fim aos confrontos e manter missões de contato com os índios. A equipe conseguiu encontrar com o grupo Korubo chamado de Maya, que tinha cerca de 18 pessoas. A Funai conta com a ajuda dos Matis, que agiram como intérpretes e interlocutores da expedição. A partir de então, as equipes dependiam da ajuda dos Matis para realizar os contatos.
Apesar da aproximação, o grupo Maya entra em conflito e mata três madeireiros de Atalaia do Norte em 2000, aumentando a tensão na região.
Com o histórico de confrontos, a Funai recomenda a demarcação e interdição da terra indígena do Vale do Javari e, em 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assina o decreto demarcando a terra oficialmente.
O número elevado de grupos isolados e a dificuldade de demarcar a terra por pequenas regiões fez com que a TI Vale do Javari fosse demarcada de forma geral, interditando a região.
No entanto, mesmo após a demarcação da terra, a Funai registrou conflitos entre os grupos indígenas nos anos de 2014, com mortes de Korubos e Matis, e 2015, com outra interação entre as etnias, que também ajudaram a motivar a fundação a começar a organizar a expedição desta semana.
Linha do tempo
1920 – Korubo e Matis entram em confronto pela primeira vez. Duas crianças Korubo são raptadas e constituem famílias no grupo Matis.
1971/1972 – Funai chega ao Vale do Javari para realizar primeiras ações e permitir a construção da BR-307.
1972 – Funai fracassa ao tentar manter contato com os Korubo.
1975 – Sertanista Jaime Pimentel é assassinato por índios Korubo, e Funai desativa postos na região. Petrobras tenta explorar a região de Javari/Jaquirana.
1980 – Confrontos entre índios e trabalhadores obrigam a Petrobras a buscar novos pontos de exploração nos terrenos mais altos entre os rios Itaquaí e Jandiatuba.
1982 – Petrobras e Funai celebram convênio para exploração mineral na região e postos do Itaquaí são reativados.
1982 a 1984 – Período de ataques dos índios aos trabalhadores.
1984 – Sertanista Lindolfo Nobre morre após ataque dos Korubo, e Funai determina o fim das ações na região.
1985 – Funai interdita a terra do Vale do Javari e inicia a etapa de demarcação definitiva da TI.
1990 – Os Korubo começam a se aproximar de comunidades não indígenas de Itaquaí.
1995 – Morador da comunidade de Monte Alegre é morto pelos Korubo. Em retaliação, moradores ribeirinhos matam dois índios.
1996 – Frente de Contato Vale do Javari é criada para resolver conflitos.
2000 – Três madeireiros de Atalaia do Norte morrem após confronto com integrantes do grupo Maya, outro grupo indígena da região.
2001 – Presidente FHC assina decreto demarcando a Terra Indígena Vale do Javari.
2013 – Os Matis tentam contato com alguns homens Korubo e registram o momento em vídeo.
2014 – Conflito fatal entre os Korubo do Coari e os Matis da aldeia Todowak, no Rio Coari.
2015 – Matis reivindicam contato, e Funai age para distensionar a questão. No fim do ano, os Matis realizam contato compulsório com um grupo isolado de Korubos do Coari.
2018 – Estudos mostram que existem 114 registros de índios isolados no país, 28 confirmados, sendo 11 deles no Vale do Jaguari.
2019 – Funai realiza ação de contato com grupo isolado dos Korubo para resolver o conflito por terras na região.
— Foto: Editoria de Arte / G1
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