O ministro do STF, Luiz Edson Fachin (relator da Lava Jato)(d), tendo ao fundo o ministro Gilmar Mendes (e), durante sessão da segunda turma do Supremo Tribunal Federal que julga pedido de habeas corpus de José Dirceu





















A decisão de mandar soltar o ex-ministro José Dirceu, tomada ontem pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), por 3 votos a 2 (na imagem, o ministro Gilmar Mendes e o relator Edson Fachin durante o julgamento), é o maior revés sofrido pela Operação Lava Jato em seus pouco mais de três anos. É até legítimo perguntar se Lava Jato acabará. A primeira tentação é responder que sim. Mas, embora o risco seja real, é prematuro afirmar.

Dirceu é o quarto réu da Lava Jato libertado em menos de uma semana. Os dois primeiros foram o pecuarista José Carlos Bumlai, e o ex-tesoureiro do PP, João Cláudio Genu, soltos também por decisão da Segunda Turma. O terceiro foi o bilionário Eike Batista, beneficiado por um habeas corpus do ministro Gilmar Mendes.

Em todos os casos até agora, Gilmar e o ministro Dias Toffoli votaram pela libertação dos réus. Em dois deles (Genu e Dirceu), foram apoiados pelo ministro RIcardo Lewandowski; no terceiro (Bumlai), por Celso de Mello. Ora com Celso, ora com Lewandowski, mas sempre com Gilmar e Toffoli, formou-se na Segunda Turma uma maioria sólida contra as prisões preventivas decretadas por Moro.

As prisões preventivas são um dos três pilares da estratégia do juiz Sérgio Moro e da força-tarefa na Lava Jato, criada sob inspiração da Operação Mãos Limpas – os outros dois são a delação premiada e a ampla divulgação dos processos na imprensa. Sem a perspectiva de permanecer na cadeia, reduz o incentivo para que os réus colaborem com a Justiça, confessem seus crimes e entreguem outros criminosos.

O ex-ministro Antônio Palocci insinuou ontem à noite que poderá abandonar as negociações de seu acordo de delação premiada, tendo em vista a perspectiva de ser solto. Outros réus centrais na Lava Jato, como o ex-deputado Eduardo Cunha ou o ex-diretor da Petrobras Renato Duque, também tendem a desistir de suas delações em virtude das decisões da Segunda Turma. Muitos outros engrossarão a fila para sair da cadeia.

Fica ameaçado, em especial, o acordo com os mais de 50 executivos da OAS. Trata-se da maior expectativa da Lava Jato depois da delação-bomba da Odebrecht. O empreiteiro Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, já declarou a Moro que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva era mesmo o proprietário oculto de imóveis no Guarujá e em Atibaia. Paira a dúvida também sobre as dezenas de inquéritos abertos há um mês contra políticos pelo ministro Edson Fachin, o único a votar contra todas as libertações na Segunda Turma.

Por mais que uma decisão judicial possa ser nefasta – e esta sem dúvida será –, ela não deve ser julgada apenas pelos efeitos, mas acima de tudo pelo mérito. O procurador Deltan Dallagnol, líder da força-tarefa da Lava Jato, publicou ontem no Facebook um texto em que critica a libertação de Dirceu. Ele a compara a outros casos, em que a mesma Segunda Turma manteve na cadeia réus considerados perigosos, dois deles traficantes de drogas.

“Enquanto o tráfico ocupa territórios, a corrupção ocupa o poder e captura o Estado, disfarçando-se de uma capa de falsa legitimidade para lesar aqueles de quem deveria cuidar”, escreveu Dallagnol. “A mudança do cenário, dos morros para gabinetes requintados, não muda a realidade sangrenta da corrupção. Gostaria de poder entender o tratamento diferenciado que recebeu José Dirceu, quando comparado aos casos acima.”

Faz sucesso em certos círculos o argumento de Dallagnol, segundo o qual no Brasil vigora uma Justiça para ricos e privilegiados e outra para pobres. Mas trata-se de um argumento falacioso na essência. Tanto os casos dos traficantes quanto o de Dirceu têm de ser avaliados por seus méritos. Para a Justiça, é irrelevante se o réu é rico ou pobre. É injusto que um réu socialmente privilegiado seja beneficiado – mas também é injusto que sofra punição indevida apenas por ser rico ou poderoso como Dirceu.

A questão central é se a prisão preventiva decretada por Moro se justifica. Mais que nos casos de Bumlai ou Eike, a resposta, no casos de Dirceu e Genu, é um inequívoco "sim". Ambos continuaram a receber propina, mesmo durante e depois de condenados no julgamento do mensalão. De acordo com a lei, é justamente o risco de incorrer em novos crimes que deve embasar a prisão preventiva.

Dirceu foi um dos artífices dos esquemas que desviavam recursos da Petrobras e de outras estatais. A força-tarefa o considera o segundo na hierarquia daquilo que chama de “organização criminosa”. Ele foi condenado em dois processos a mais de 31 anos de prisão por esse crime, além de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, relativa ao desvio de R$ 17 milhões. Horas antes do julgamento do habeas corpus, a força-tarefa apresentou uma nova denúncia, que o acusa de desviar outros R$ 2,4 milhões.

O próprio PT rachou quando vieram à tona as provas do enriquecimento pessoal de Dirceu à custa dinheiro público. Uma ala expressiva do partido, mesmo aceitando o escandaloso desvio “em nome da causa”, defendeu sua expulsão. Ao menos temporariamente, diminuiram os brados “Dirceu, guerreiro do povo brasileiro”.

Para os três ministros da segunda turma que mandaram soltá-lo, nada disso configura risco para a sociedade. Toffoli recomendou à primeira instância que use outras medidas para evitar o envolvimento de Dirceu em novos crimes, como prisão domiciliar e tornozeleiras eletrônicas. Lewandowski e Gilmar chamaram a atenção para outro ponto relevante: não pode haver cumprimento antecipado de pena. 

Uma decisão recente do STF determina que as sentenças começam a ser cumpridas a partir da decisão em segunda instância. “Está havendo prisões a partir da prisão do 1º grau” disse Lewandowski. “Isso é vedado por nosso ordenamento jurídico e de qualquer país civilizado.” Gilmar também cobrou maior celeridade da segunda instância que julga os recursos às sentenças de Moro, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). “Não podemos nos ater à aparente vilania dos envolvidos para decidir acerca da prisão processual”, disse. 

Mais que as “alongadas prisões” a que Gilmar já se referiu, incomodam, portanto, os alongados processos. Se Dirceu já tivesse sido condenado em segunda instância, já estaria cumprindo pena – e o habeas corpus deixaria de fazer sentido (embora ele sempre pudesse recorrer da sentença). Até agora, o TRF-4 está sentado sobre o processo dele e de dezenas de outros réus da Lava Jato.

Mesmo tendo mantido as decisões de Moro em algo como 95% dos casos, o TRF-4 havia julgado até março apenas seis processos da Lava Jato. O tempo médio entre a denúncia e a decisão, segundo levantamento do jornal Folha de São Paulo, era de um ano e dez meses. Dirceu está preso há um ano e nove meses, período mais que suficiente para que os desembargadores já tivessem tomado uma decisão. Por que não o fizeram?

Na Itália, a Operação Mãos Limpas começou a naufragar quando as cortes superiores e o Parlamento se mobilizaram contra as prisões preventivas que conduziam às delações. O dia de ontem pode marcar, aqui no Brasil, o início do fim da Lava Jato.

São, portanto, procedentes as críticas ao STF pela onda de libertações, em especial a de Dirceu (cada uma deve ser analisada individualmente). Ainda mais procedentes, contudo, são as críticas ao TRF-4 pela lentidão em suas decisões. Juízes não podem ser criticados se apenas fazem cumprir a lei, mas sim por não fazer cumpri-la.