Nos Estados Unidos, a Constituição não é tão benevolente com o presidente da República. Se cometer um crime de responsabilidade, será submetido no Congresso a processo político. O impeachment – nome dado por lá apenas à aceitação do processo pela Câmara – exige apenas maioria simples dos deputados (218), embora o afastamento (que nunca ocorreu) demande dois terços dos senadores (67).
Se cometer um crime comum, ele estará sujeito a julgamento num tribunal regular, como qualquer cidadão. Há uma controvérsia se a Constituição lhe dá imunidade de julgamento por ações penais enquanto está no cargo. Mas não quanto às ações civis. Quando presidente, Bill Clinton foi condenado por um tribunal do Arkansas a indenizar uma ex-funcionária do governo local por assédio sexual e perdeu a licença de advogado.
Aqui no Brasil, um processo tanto de impeachment quanto por crimes comum exige autorização de dois terços dos deputados (342). Bastam, portanto, 172 votos na Câmara para livrar o presidente Michel Temer da denúncia apresentada ontem contra ele pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Por ora, não há dúvida de que Temer os terá quando o tema for a plenário.
A dúvida é: e depois? Por quanto tempo o brasileiro ainda terá de ser submetido a suas explicações para fatos inexplicáveis? A que tipo de contorcionismo jurídico estaremos sujeitos, na tentativa ofegante de Temer e seus asseclas para sobreviver no cargo e salvar esquemas de corrupção que depredam o Estado brasileiro?
Para qualquer um dotado de um mínimo de bom senso, uma única frase dita na famigerada conversa com o empresário e delator premiadíssimo Joesley Batista – sobre a qual não paira dúvida alguma em nenhum dos laudos periciais, nem mesmo no encomendado pela defesa – é suficiente para incriminá-lo: “É o Rodrigo”. Reproduzo, da denúncia, o trecho do diálogo:
– … é o Rodrigo.
– É o Rodrigo? - pergunta Joesley.
– O Rodrigo - reafirma Temer.
– Ah, então ótimo.
– Pode passar por meio dele, viu? (…) da minha mais estrita confiança.
Alguma dúvida de que Temer tenha indicado o ex-deputado Rodrigo Loures – da sua “mais estrita confiança” – como intermediário a Joesley?
Alguma dúvida de que Loures depois recebeu, numa mala, R$ 500 mil em propinas – que ele mesmo devolveu?
Alguma dúvida de que negociou com o executivo e delator Ricardo Saud entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão por semana – atenção: por semana !!! – em troca da aprovação de uma medida favorável ao grupo de Joesley no Cade?
De que depois telefonou ao presidente em exercício do Cade, Gilvandro Vasconcelos, com a demanda?
Não há nenhuma dúvida, lógico. Tudo isso está gravado e documentado. Temer dirá que o dinheiro não era para ele, assim como também dirá que não era para ele o R$ 1 milhão que Saud diz ter mandado entregar ao coronel aposentado João Baptista Lima, na empresa Argeplan, na Vila Madalena, em São Paulo, na época das eleições de 2014.
As manobras acrobáticas de sua defesa tentarão transformá-lo de líder de um poderoso grupo político, flagrado em ato de corrupção, em vítima de uma armadilha. Para isso, desprezarão todas as provas recolhidas na delação e as gravações de Loures. Concentrar-se-ão – em preito à mesóclise... – na única prova recolhida contra Temer em pleno exercício de seu mandato: a gravação feita por Joesley.
No laudo apresentado com a denúncia, os peritos da Polícia Federal concluem que o equipamento entregue por Joesley foi mesmo usado para fazê-la .“Na?o foram encontrados elementos indicativos de que a gravação questionada tenha sido adulterada”, afirmam. As falhas na gravação, prossegue o laudo, “são compatíveis com as decorrentes de interrupção no registro das amostras de áudio, por atuação do mecanismo de detecção de pressão sonora do equipamento gravador”.
Não houve, portanto, de acordo com a perícia, qualquer tipo de manipulação ou adulteração na conversa. Apenas uma gravação de má qualidade, registrada com um equipamento precário, que interrompe a captação quando não percebe som ambiente, para voltar a gravar logo em seguida – e produz chiado. Era o que parecia evidente desde o início para quem tivesse se dedicado a entender o assunto.
A denúncia de Janot não depende dos trechos inaudíveis, nem mesmo do áudio para se sustentar:
– Há o desencontro nas versões apresentadas por Temer para explicar o episódio (ele disse ter recebido Joesley para ouvi-lo sobre a Operação Carne Fraca, deflagrada dias depois; primeiro negou, depois admitiu ter voado num jatinho dele em 2011);
– Há as referências a seu comando nas gravações de Loures (que o chama de “chefe” e “presidente”);
– Há comunicação entre Loures e Joesley por meio de aplicativo de mensagens evanescentes (filmadas e fotografadas enquanto eram enviadas);
– Há, enfim, a frase inequívoca de Temer: “É o Rodrigo”.
O que não há – nem parece que haverá – é um grupo de pelo menos 342 deputados dispostos a aceitar uma denúncia por corrupção em que sobram provas de corrupção. Por que será?
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